“I never could stand the sight of a man carrying a cross.”
Nas minas de carvão da Pensilvânia, na década de 1870, um pouco depois do fim da Guerra Civil Americana e da Abolição da Escravatura nos EUA, as condições de trabalho prosseguiam péssimas, escandalosas, desumanas: os trabalhadores pareciam condenados ao inferno na terra e, caso reclamassem, as autoridades instituídas os prometiam à forca. Um século depois, em 1970, Martin Ritt cometeu uma obra-prima do cinema político ao narrar este drama em The Molly Maguires (Ver-Te-Ei No Inferno, no Brasil, e Ódio en Las Entrañas em espanhol).
Os mineiros, muitos deles imigrantes irlandeses vivendo na penúria quase completa, penam como bestas-de-carga nas minas. Recebendo centavos de salário – que mais parece uma esmola. Só o bastante para que possam manter-se vivos até o dia seguinte, para voltarem à dura labuta que enriquece só o patrão, enquanto aos proletas resta somente o amargo consolo do uísque barato e do baralho no escasso tempo livre. No horizonte, nenhuma perspectiva de melhora, só a de uma morte precoce por tísica, tuberculose ou “acidente de trabalho”.
O retrato dos martírios da classe operária e camponesa, presente em belas obras da literatura universal como Germinal de Zola, Vinhas da Ira de Steinbeck ou O Caminho Para Wigan Píer de Orwell, recebe a devida atenção da sóbria câmera de Martin Ritt neste The Molly Maguires. Mas o que interessa sobretudo ao diretor – célebre por obras como Norma Rae, Hud – O Indomado, Conrack, dentre outros – não é apenas fazer a crônica de um martírio cotidiano. Ritt quer muito mais expor o levante do que a via-crúcis. Quer ser o cronista da revolta e não da resignação.
Partindo de uma história real – um grupo de “radicais” irlandeses, os Molly Maguires, que realizaram uma série de atos “terroristas” em protesto contra a calamitosa existência que levavam como mineiros – Martin Ritt fez um de seus melhores filmes. Há o suficiente de pancadaria e troca de tiros para não deixar bocejar o machão fã de filmes de ação. O climão de western, com os indispensáveis ingredientes de sempre (o saloon, o forasteiro-misterioso, a beldade virtuosa e difícil…), certamente agradará de mão cheia aos fãs dos filmes deste gênero realizados Sergio Leone, Samuel Fuller ou Clint Eastwood. Já as intrigas e conspirações deixam The Molly Maguires com “cara” de thriller político inteligente, ao estilo de Alan J. Pakula.
Sean Connery, que interperta um dos líderes dos Molly Maguires, é um mineiro lacônico mas ponta-firme na hora de bolar, chefiar e pôr em prática ações revoltosas contra as autoridades opressoras. Eles explodem trens que carregam o minério extraído. Dinamitam seu próprio local de trabalho. Sequestram policiais e atentam contra patrões. Um anárquico espírito Ludista os anima.
É duvidoso que estas atitudes exorbitantes, de um desespero incendiário, mudem de modo fundamental a estrutura da sociedade e da opressão; Martin Ritt não é ingênuo a ponto de vender a lorota de que meia dúzia de rebeldes, isolados com suas munições e conspirações, “virariam a mesa” em prol do proletariado enquanto classe. O que o filme realiza é muito mais uma crônica, cheia de empatia, mas também eivada de lucidez, sobre a trágica revolta de homens cansados demais da vida trash que levam, mas cuja rebelião está sempre sob o risco de ser violentamente esmagada pela polícia. Esta infiltra um espião, James McParlan, para surrupiar os segredos do grupo e levá-los a fazerem besteira.
A posição do personagem de Connery, no entanto, é instigante de reflexões múltiplas: indo na contra-corrente do discurso do padre da cidade, que garante que Deus irá condenar à danação eterna, nas torturas da caldeiras do Inferno, todos aqueles que apelarem para a Violência, o revoltado Conneryano sustenta que a maior indignidade e o maior pecado seria permanecer em silêncio frente à exploração.
Quando morre um dos mais veteranos mineiros da cidade, que carregou com modéstia e resignação o seu fardo por 42 anos, a última gota cai e faz a caldeira de indignação transbordar. O “transe” em que ele entra neste momento é tão memorável quanto as idéias que ele então extravasa, quase como um personagem de Dostoiévski numa crise epilética e histérica. Relembrando de cabeça a “essência” de seu discurso, ele consiste mais ou menos no seguinte manifesto: “Não devemos ir quietos para o nosso túmulo! É grotesco morrer em completo silêncio depois de sofrermos uma vida inteira de humilhação! Seria grotesco não fazer nem o som que faz um inseto ao ser esmagado pela sola do sapato! Expirar e não deixar no ar nem mesmo um mísero eco!”
Encontro muita beleza, muita coragem e senso de justiça ultrajada na revolta deste “ímpio” que diz não suportar a vista de um homem que carrega resignado sua cruz. Este personagem sabe que não tem opção entre perder e perder – mas prefere perder revoltado do que perder calado e resignado. É uma atitude que Albert Camus, suspeito, assinaria embaixo.
Claro que é trágico que certos homens tenham que pagar com a forca (ou a fogueira da Inquisição…) por terem ousado se erguer contra um Sistema tão íniquo e tão poderoso que esmaga sem muito dispêndio de energia aqueles que se opõem a ele. Mas ao menos alguns se ergueram, brigaram, berraram seu desacordo e sua dor, ao invés de terem se encolhido como caramujos na aceitação passiva do inaceitável.
The Molly Maguires é um filme notável por seu realismo cru, sua mensagem pouco consolador. É fiel aos fatos históricos, que nos contam, inegavelmente, sobre o esmagamento dos revoltosos pela autoridades então no poder (é como se estes eventos nos EUA servissem de espelho para aqueles que aconteceram em Paris, na Comuna de 1871, também ela esmagada por um massacre). É também um filme que revela quão trágico, quão sublime e quão belo pode ser esta revolta louca, este levante que sabe de antemão de que sua vitória quase impossível, mas que ainda sim lança-se nesta tentativa de realizar o que todos tomam por irrealizável…
Os mártires, sabe-se bem, têm alto potencial de comovimento. No meu caso, me comovo mais com os mártires sem fé, que entregaram suas vidas na construção de uma vida melhor na Terra. Prefiro estes aos mártires religiosos, que por vezes assassinam (aos outros ou a si) em nome de um Paraíso que não existe – o terrorismo crente muitas vezes faz com que o sujeito leve consigo para a morte muitas pessoas que ficariam contentes de prosseguir em sua existência terrestre…
Prossigo achando revoltantes os discursinhos religiosos que tentam persuadir os sofrentes a carregarem quietos sua cruz, como se fosse esta a mensagem de Jesus Cristo, ao invés de revoltarem-se contra aqueles que impõe aos homens as cruzes e os fardos! Prossigo achando enojante quem convida as massas ao quietismo e ao conformismo, dizendo que a Recompensa Celestial não é desse mundo e que o Céu é ganho pelos “bem-comportados”, pelos dóceis. Fazer da meekness uma virtude não passa de um engodo ideológico fabricado pelos Senhores para servir a seus próprios fins de domínio.
O que mais gosto em The Molly Maguires, e também em Norma Rae, dois filmes que adoro e me fazem entronar Martin Ritt como um dos mais sábios dos diretores políticos que já conheci, é esta afirmação triunfante da luta ativa contra a resignação ovelhística. Ele celebra a bravura do rebelde contra o acanhamento do cordeirinho. Ele “heroiciza” a liderança de Norma Rae no movimento grevista e a mobilização dos Molly Maguires contra o sistema capitalista que os esmaga. Neste cinema, encontro uma visão-de-mundo que se assemelha à minha: é sempre melhor lutar pela Terra melhorada que pelo Céu imaginário; e, se for para morrer, que seja através do heroísmo dos justos ao invés do mutismo dos conformados.
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Publicado em: 06/08/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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